quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Para além de redes e cartas

Caro Wellington de Melo,

Quero dizer, primeiramente, que este é um debate muito importante e agora inadiável, diante do momento interessante que vivemos em nosso estado, mas não só aqui, como no resto do país. Tenho afirmado já há alguns anos, através não só de artigos, ensaios e mesmo de minha tese, o valor e a importância da literatura que poetas e escritores brasileiros têm produzido. Você tem razão em parte quando diz que o Facebook não é o lugar ideal para o exercício da crítica literária, que exige espaço, tempo e reflexão. Mas, o que penso e posso dizer de agora em diante – e o que disse no Facebook – não é fruto apenas de uma impressão, mas de opiniões que venho formando a respeito não só de eventos literários, como também a respeito da literatura que se produz hoje em nosso estado. O meio, o Facebook, entretanto, e você deve saber disso, não só permite como estimula uma linguagem muito mais descontraída, pois se esse “de verdade” tivesse o peso que você deu a ele, eu estaria incorrendo numa atitude suicida (estaria dizendo que a Crispim, por exemplo, também nunca teria feito um evento “de verdade”). Ou seja, parte do que disse ali é fruto da pressa própria do suporte. A necessidade, que no mesmo post sinalizei, de um grande debate, essa nasceu de minhas meditações críticas.

Também acho que o melhor lugar para o exercício da crítica são os artigos, os ensaios e sites literários. E nisso estamos de acordo. Você deve saber também que a “autoridade” de um crítico nunca o desviará de erros – mesmo que ele esteja certo de estar certo, como é o meu e o seu caso, valendo-se neste caso do discurso crítico, ao travarmos este debate. Ou seja, a “autoridade” de um crítico de 33 anos valerá tanto quanto os seus erros. O erro é uma dimensão fundamental da crítica, assim como a defesa de valores e pontos de vista. Utilizarei a minha “autoridade” como todos têm utilizado a sua – sabiamente algumas vezes, desgraçadamente outras, mesmo não vendo claramente quando uma e quando outra. Não sou a “maior” autoridade (e não há falsa modéstia nessa negação, mas a tentativa de livrar-me de simplificações ou dicotomias que diminuem a própria percepção que busco desenvolver sobre o literário), sou uma voz uma entre algumas e não represento mais do que um desejo com certa repercussão que aos poucos vai tomando forma. Será que pelo fato de ser professor universitário, por ter produzido uma tese e escrever com certa freqüência para algumas revistas e periódicos eu seja uma autoridade?

Nosso esforço de artistas, e me vejo muito mais por esse viés, é produzir sem deixar que a universidade subjugue a voz poética. Um evento pode, sim, ser um espaço também para esse debate. Creio que o Laboratório foi pensado para estimular a criação desses espaços, não? E, para mim, foi o evento mais pertinente produzido pelos Urros Masculinos (e não é pelo fato de ter sido convidado para ele, que penso assim). Afinal, participei da Freeporto com a Moinhos de Vento e me parece ser a festa o nervo – ou talvez, apenas o ensejo – de nossa discussão.

Sim, literatura e vida para mim são indissociáveis. E não duvido dos momentos luminares que a Freeporto ofereceu não só a vocês que fizeram a festa, como também aos espectadores. Mas isso não impede que eu tenha ressalvas consideráveis à festa, mesmo que tenha sido tocado por esses momentos. Eu, Fábio Andrade, posso não ter a devida disposição estética para uma proposta que agradará a outros: a Freeporto é fruto de uma tentativa de apagar as fronteiras entre arte e vida. É isto que tenho entendido até agora a respeito da proposta do evento e o que vi, quando pude lá estar presente. Sou um acadêmico, e sou poeta, pai, guitarrista bissexto, editor... Nunca vi o academicismo como uma coisa a ser cultivada, embora acredite que a academia tenha uma função importante e fundamental, se pudermos sobrepor isso à burocracia. Se não, não estaria nela. A Crispim foi criada para dar forma a esse desejo: aumentar o raio de ação de um certo conhecimento sobre o literário, isso bem antes de existir Laboratório. A dicotomia acadêmico/não-acadêmico, nesse caso, é pobre e pouco eficaz para explorar determinadas sutilezas presentes nas diferenças que temos uns em relação aos outros e que agora ganham relevo. Reproduzo algo do Octavio Paz, que acho de extrema lucidez:

“Minha severidade com os professores se deve ao fato de acreditar que a continuidade da tradição poética depende deles em boa parte. Sem os pedagogos gregos, ninguém teria recitado os poemas homéricos e a Grécia não teria sido a Grécia. Reconheço, além disso, que a tradição poética perdura, embora maltratada, graças a eles; ao contrário do ocaso das letras clássicas, a tradição poética nacional está viva e é cultivada em quase todas as universidades”. (A Outra Voz, 1991, p. 123)

Essa é a função que acredito legítima para a academia, mesmo com suas limitações.

Sim, Wellington, não estive presente a tudo, como Cristhiano Aguiar. Mas o que presenciei me possibilita falar do que estou falando aqui e falo apenas do que vi. Minha opinião a respeito da Freeporto é bem diferente da que tenho em relação ao Laboratório. Reitero: vejo o Laboratório como a melhor e mais válida iniciativa do Urros Masculinos. O formato da Freeporto não me satisfaz – e não apenas como espectador, mas como alguém que alimenta determinados valores estéticos. Daí a frase em latim que coloquei: “Nemo dat quod non habet, nec plus quam habet”, ou seja, “Ninguém pode dar o que não tem, nem mais do que tem”. Creio que essa frase, porém, pode ser aplicada a qualquer um de nós, a qualquer evento realizado na cidade, cada qual com seu mérito e suas limitações (realizar um evento literário já tem certo mérito em se tratando de chamar a atenção sobre a literatura), pois, a partir dessas perspectivas diferentes, aquilo que realizamos não atenderá a muito do que o outro espera. Para mim, o espírito da festa tem muitas limitações, não interessa, nesse sentido, se ela terá três ou cinco edições, pois seu espírito, ao meu ver, tem como princípios valores estéticos com os quais não concordo. E aqui chegamos ao centro de toda essa celeuma. Aquilo que provocou reações negativas de minha parte em relação à Freeporto se deve ao fato de que, para mim, existem fronteiras entre a experiência poética e a vida cotidiana que não podem ser transpostas. Penso, semelhantemente a Rimbaud, que a poesia é uma experiência que toma a vida como ponto de partida para um além, um transcender, uma saída da tagarelice do cotidiano em direção ao silêncio e ao aprofundamento das coisas que as nossas palavras apenas triscam. A estética que me parece estar na base do que o Urros propõe enquanto grupo é exatamente o contrário disso: um apagamento das fronteiras entre vida e arte, entre cotidiano e arte poética. Penso no Sarapatel Literário entre outros eventos, que seriam exemplos disso. Para alguns, isso seria talvez poetizar o cotidiano, para outros, como é o meu caso, seria cotidianizar a arte. O que implicaria quase numa banalização da poesia: encará-la como outra experiência qualquer. Um nivelamento que pode ser muito perigoso. Neste último caso, tomo muito mais em conta o que vi na Freeporto e o que li, principalmente em Bruno Piffardini e Artur Rogério, do que o “Sarapatel”, ao qual não fui, embora tenha recebido convites e releases. Aí está o fundamento das diferenças de olhar e perspectiva.

Em relação à Pós-modernidade, e ao mundo fragmentário ao qual você diz ser eu tão avesso, é preciso esclarecer: de qual pós-modernidade você fala? Se for a do consumismo triunfante, do espetáculo fácil, da conversão da arte em mera mercadoria, devo confessar que essa pós-modernidade não é minha casa. Mas aquela que relê de maneira criativa e crítica a tradição, matizando as relações entre inovação e passado e que tornam, por sua vez, obsoletas as posturas da vanguarda belicosa, chegando a prolongar alguns valores ainda pertinentes da própria modernidade... essa é a pós-modernidade em que vivo. Quanto ao contemporâneo, ele tem vários rostos. Não gostar da Freeporto ou da poesia de Fábio Andrade, ou da de Wellington de Melo, não significa ignorar o contemporâneo. Nenhum discurso pode se assenhorar do arquipélago do presente, declarando-se de maneira absoluta o novo “isso” ou “aquilo”.

Não quero defender os pontos de vista de Jacineide Travassos, pois acho que só ela poderia fazê-lo. Posso, sim, dar um depoimento sobre a sinceridade intelectual, a percepção poética muito singular que a credencia a intervir nessa cena literária, não só como poeta, mas também como professora que tem formado muitos bons leitores. Acho, inclusive, que a indignação dela não deixa de ser um elogio. Atitude natural de quem se pauta por valores estéticos que são diferentes daqueles que embasaram a performance. Uma performance, o prova a história moderna da arte, deve integrar essa indignação ao seu horizonte de realização. E nesse sentido, não precisará de justificativas. O contrário disso seria subtrair ao leitor-espectador o direito de rebelar-se contra aquilo que ele considera histriônico ou mera expressão, a liberdade de se levantar, emitir opiniões, ir embora ou simplesmente não gostar. Há ainda a possibilidade “remota” de entender e não gostar, que deve ser considerada por todo artista que acredita estar subvertendo determinadas convenções, pois se não o risco em incorrer no complexo do gênio incompreendido se torna uma realidade.

Diria que meu comércio com certa noção de vanguarda é muito mais intenso do que o de Jacineide. Mas guardo tanto com Jacineide Travassos quanto com Bernardo Souto, sem dúvida, muitas afinidades estéticas. Eles sabem o que penso por exemplo a respeito de Miró, por quem nutro grande carinho – o próprio Miró sabe, pois fiz questão de dizer no Laboratório: sua poética da performance perde em força verbal (e vejam, para mim isso significa uma perda), dando espaço para uma poesia cênica e corporal. Como texto, acho muitos de seus poemas frágeis; mas agregados à arte da recitação eles ganham “corpo”. Disse a muitos que acho por esse motivo ele um dos melhores de sua geração, a marginal, que representa, por sua vez, uma valorização desse caráter performático. Nunca precisei ser cordial ou fazer média. O meu diálogo com Miró é que sempre foi amigável, reafirmo. Diria até baseado numa mútua admiração, penso eu. A ponderação e a tentativa de objetivação crítica são sim um esforço de minha parte que só as mentes imaturas interpretarão como jogo político. As mesmas que julgarão que a discordância de ideias e sensibilidade artística deve ferir a pessoa do outro, que ela estaria acima, por exemplo, da amizade, da aceitação do outro etc. Só quando fizermos essa diferença, entre a obra de alguém e sua pessoa, poderemos ter um debate válido e significativo. Ser convidado para eventos não deve representar um jogo de favores para quem quer que seja. Somos convidados porque o outro acha que nossa presença ajudará a fazer de seu evento algo de importante, consistente. Do mesmo modo, incluí-lo, Wellington, no projeto de minha coletânea de poesia pernambucana no século 21 significou isso também, um reconhecimento da diferença e do valor dela – não uma adesão.

Também tenho juízos críticos a respeito dos jovens autores, mas que estão em formação como estão as respectivas obras. O que não impede também que eu os explicite. A crítica também é uma prática calcada no provisório, sempre defendi isso. Você deverá lembrar que no primeiro contato que tivemos por telefone, fiz questão de deixar claro o que pensava sobre sua poesia: que gostava do primeiro livro (o Diálogo das Coisas, e não gostava muito dos caminhos que ela estava tomando, criando armadilhas para alguém que eu via como um bom poeta). Essas eram impressões que se confirmaram à medida que li o Desvirtual Provisório. Não acredito que a “média”, o jogo dúbio dos agrados, faça parte da postura crítica que acredito e busco exercer sempre. Basta ler o que escrevi, seja na minha coluna do Interpoética, seja na minha matéria da Continente Documento, seja na minha tese, onde expresso claramente juízos críticos, nomeando cada boi segundo a maneira como escuto o seu mugido.

Espero que todos tenham percebido que tudo que fora escrito aqui diz respeito a mim apenas, são minhas opiniões e juízos críticos e não devem ser estendidos a outros, mesmo aqueles mais próximos que fazem comigo a revista Crispim.

Por fim, diria com Magritte que isto não é uma carta nem uma resposta. Apenas a minha forma de participar desse debate, que inclusive não é meu, mas de todos. E ele não se encerra aqui.

Recife, 05 de janeiro de 2011.